terça-feira, 25 de setembro de 2012

Herrar é umano.

Você que lê quando aqui escrevo que errar é humano pode suspeitar com desdém que isto seja desculpa de ceguinho, ora, bengala. A verdade é que é uma justificativa mesmo. Confesso que errei. Evoco, para me valer, esse ditado redentor.



quinta-feira, 1 de março de 2012

Algumas velharias transplantadas do Desobjeto: de entre 2004 e 2007

23.4.04


Eu perguntava: quando sentia isso? quando eu morro? quando foi que eu morrí pela primeira vez? foi quando ele me disse que não era ele. morro quando a luz se acende e as mariposas escapam pra dentro pelo buraco na parede que ele chama de janela. e o que ele dizia? porque sua voz era tão fria? a única coisa que entendí é que ele viu uma mariposa e que ela voava incessantemente. tinha uma caixa com flores verdes no chão, no canto da parede vazia do meu quarto. três vezes ele falou da mariposa, que ela esvoaçava e que era agoniante porque esse esvoaçar parecia com gestos, o resto que ele falava, falava, eu não entendia. então já não era ele, era só uma mariposa voando com seus gestos que eu não conseguia entender. olhei pras flores, peguei uma e coloquei no bolso, toda amassada, olhava a mariposa e não me lembro mais de nada.
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Paisagem Noturna 


São fragilidades que tornam o tempo cíclico. 
Esse tempo - o ponto em que não me dessensibilizo da sua presençamemória. 
Olho o sem-fim pela noite escura, 
sutís lembranças e mistérios, 
Inquérito interno, 
(a saudade é um tipo de contentamento) 
e me regozijo em certa hora 
sobre os olhares encontrados 
e os sorrisosflores aos montes, 
a chuva da pele e o calor do corpo. 
Ainda leio o seu horóscopo no jornal 
(nem ligo para o que ele diz) 
como um cuidado, 
uma forma de contato ou minha superstição. 
A melodia aquática da chuva que se choca contra os objetos 
(como são concretos! 
e como é líquida a minha lembrança, embora densa), 
o vento sub-reptício penetrando os poros da minha pele solitária, 
o som tênue da tv 
e os roncos distantes dos motores incansáveis dos carros, 
tudo isso, e meu olhar perdido, se relaciona e é uma só coisa. 
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- De quem é essa perna? E esse braço? Tá tudo tão entrelaçado. 


- Peraí, levanta aqui um pouco pra eu poder coçar meu pé. Me ajuda aqui. Isso, ai que bom! 


- Meu braço travesseiro tá meio dormente... 


- Se quiser, põe pro outro lado pra descansar. Peraí que tá puxando meu cabelo, ai. Pronto. Xô colocar meu cabelo pra cima, assim você não puxa mais. 


- Mas seu cabelo tá fazendo cócegas no meu nariz! 


- Ai jisuix, calmaê. Assim tá legal? 


- Tá, ficou ótimo. 


- E esse meu braço que tá sobrando? De vez em quando imagino como seria ótimo se os braços fossem encaixáveis e removíveis - esse que fica embaixo, não sei se ponho pra trás ou pra frente, mas pra frente fica muito tronxo! Achei! Assim tá maravilhoso. Ih, caiu o edredon, e agora? 


- Putz, vamos ver se a gente pega - estica a mão aí, tá quase, hhhrrrrrrrrr, deu. Mas põe ele pra lá. 


- Você tá com calor? Eu tou com frio! 


- Ah, eu te esquento, não vamos nos cobrir não, please! 


- Mas eu gosto tanto de ficar coberta... Tá, tudo bem, então me esquenta muito. 
Pô, mas se você me apertar assim eu fico sem ar! 


- Meroiô? 


- Assim tá bem melhor. 


- Chega um pouco pra lá que eu tou na beira da cama. 
Agora sim. Hmmm, essa posição tá perfeita: não se mexa! 


- Mas agora eu quero fazer xixi...
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Vaga-Lume 


Estou sozinha com a poeira da estrada. Respiro fundo mais solidão que é pra me acostumar com ela e sentir-lhe o alento. Estive contemplando o céu durante horas, dias, anos. As estrelas me olharam como uma flor pequena e tola. A lua veio algumas vezes mostrar sua intimidade com a terra e eu era um animalzinho triste. Muitas coisas se passaram e eu fiquei aqui parada olhando, tentando entender. Vento vem, calor vai, chuva para as borboletas. Aninharam-se as pombas cinzentas, passou por mim um cão de olhar cabisbaixo e um cavalo sem dono. Cena de abandono. Quando o arco íris tomou meu tempo sorri e falei sozinha. Sentei numa pedra grande e boa, pedra generosa e maternal. Talvez de longe se ouvisse o acelerar do meu coração quando os carcarás pensaram que eu era uma ave morta. Nunca morri tanto. Sozinha. Quando não queria estar. Voltei para o mundo e esqueci na estrada o meu lenço de chorar e meus enfeites de alma (aqueles, dos quais te falei ao entardecer de um dia qualquer). Alma que não existia quando você chegou e que ficou na estrada no meio da poeira vermelha da terra viva. Não tenho lógica. Não tenho pai, não tenho mãe. Sou uma folha seca voando pelo vão da noite pura. Virgem. Ensolarada. Ramos de flores balançam em meus aforismos de menina. Os vermes comem a terra por baixo das tocas dos ratos. Só a borboleta voa com a folha muda, surda, funda, oriunda de uma árvore seca, retorcida, negra. Seca, seca. Um incêndio passou, deixou tudo seco, tudo aparentemente morto, mas amanhã vem o verdume, quando a chuva molhar as raízes todas, mães, vivas, absurdamente vivas. Corre o tempo. Passam as horas, modifica-se o espaço. Não ouço badaladas, não há igrejas. Não passa ninguém. É só o vento que me diz palavras de vento redemoinhando, hora misturadas, hora combinadas. Lembrei-me: vem, me tome como uma flor que se arranca da planta na beira da estrada e cheire meu perfume de antes. Aquele perfume. Acaricie minhas pétalas para que elas se tornem mais macias e brilhantes, mais intensas na cor e no olor. Ou me tome feito mulher, que se pronuncia, que te devora, que te aniquila e que te recria, sujo de desejos singelos, pervertidos segredos. Descubra meu nome e assombre a minha dor, reconheça-te em mim. Chame os vaga-lumes. Não se aborreça se um dia eu lhe roubar o sono por horas a fio a te investigar os detalhes, as pequenas diferenças que existem de você entre todos os outros. Os poros da sua pele macia, nova, forte, minha. Os pelos. Os vincos da vida. As mãos, os riscos, as doces infantilidades. Quando eu espalhar o suor seu nas suas costas e nelas me encostar pra sentir-lhe a umidade, seja bom comigo. Quando eu cheirar a sua nuca e seus cabelos, e afagá-los como quem molha a mão na nascente de um rio, seja um rio perene. Me desfolho como seca árvore do cerrado. Esqueci. Ah, a poeira da estrada!
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A Leveza e o Peso 


Ele não a via tinha tempo. Só de pensar num encontro tremia nas bases, mas todos os dias imaginava a cena: ela vinha caminhando de lá e ele de cá, e casualmente se esbarravam. No pensamento, a situação era exata - todas as palavras e expressões do seu rosto e do seu corpo - irretocável. 


Bom, mas na realidade, se acontecesse, provavelmente ele se sentiria idiotizado, sem saber o que dizer, onde meter as mãos e mesmo em que lado do rosto dela dar um beijo de cumprimento - o que levaria àquele constrangimento de os dois irem para o mesmo lado ou coisa parecida, que é terrível quando se está inseguro. Além do mais, encontrá-la em qualquer situação não seria uma verdadeira surpresa, nem pareceria casual para ele, que estava sempre na premência de encontrá-la, que pensava diariamente em vê-la por aí. 


Ela o perseguia. Punha seus olhos sobre ele, que tinha suas atitudes, de certa forma, gabaritadas por aquilo que ele imaginava que ela faria - compreendeu isso quando lera A Insustentável Leveza do Ser, o livro que insistia em permanecer na cabeceira de sua cama. O julgamento dela a que ele mesmo se submetia e a cena do encontro imaginado se repetiam tantas vezes que ele já não suportava mais. Estava preso, fingia a espontaneidade que lhe escapava e a naturalidade desse não-ser. Ele se sentia desfigurado. Desfigurava-se a imaginação que ele tinha do seu próprio rosto quando pensava no encontro e quando sentia aqueles olhos invisíveis a lhe fitar. 


Um dia, inacreditavelmente, o encontro aconteceu exatamente como ele sempre imaginara, e cansado por aquele eterno retorno, sem nenhum ar de surpresa e com um olhar impaciente, inadivertidamente argüiu: - Deixe-me em paz! Pare de me perseguir, você me sufoca! 


Ela pensou que ele era louco e ele sentiu que estava livre, enfim.
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Quadro, livro, mesa, música, roupa, memória, futuro, "o espaço é a acumulação desigual de tempos". Eu sou um ajuntamento desigual de estações. Aquele garoto de três anos que vai lá longe numa rua qualquer de braços dados com o pai é um amontoamento de tempos. Prédio, árvore, carroça, via, cachorro, coisas, tempo materializado, idades aglomeradas. O tempo não há originalmente? Artificialidades não deixam de ser concretas ou existentes. Inventa-se o tempo e ele se torna em coisas e seres. É como brincar de ovo e galinha e é um paradoxo. Se o tempo se torna seres e coisas, ele veio primeiro; se as gentes inventaram o tempo, elas vieram primeiro; se o tempo não existe por si, ele não pode ter vindo primeiro (?). Quem disse que ele não existe? É muito razoável que as coisas não tenham tido um começo, ou que esse começo não seja visivel ou adequado. Pouco importa o começo: estão aí. Que utilidade tem isso? As coisas não precisam ter conveniência nem proveito. E "coisa" é uma palavra que tem muita serventia. Se tudo já foi dito, falemos novamente, ou não.
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Tanta coisa que já passou às vezes parece cena de filme que eu vi há muito tempo e que não me lembro mais exatamente. Acho bonito estabaco, escambáu e estampido, mas gosto muito mesmo é das proparoxítonas. Em frente à televisão às vezes, e ela parecia estar sozinha, porque eu não estava lá, tava vendo através dela, ensimesmada. Meu cérebro tem horas que escorre pelos buracos dos ouvidos. Mudei de opinião. Agora mudei de opinião outra. Não sei sobre que coisa mudei de opinião neste instante. Mãe! Minha boca tá enxergando, meu nariz tá roncando e minha perna tá tonta. Eu sempre quis tanto um jardim de bromélias. Li, certa vez, que todos os sentimentos ruins são disfarces ou faces do medo, e que todos os medos são variações de um só medo - o medo da morte, da aniquilação. Saudade é paroxítona, mas eu gosto. Da palavra e, um pouco quase nunca e umas vezes tanto, do sentimento. Ei, dê cá um abraço, pessoa! Eu não quero vender não. Gosto de morder os lábios. Quando mordo os lábios sinto gosto de gente. Sou de todos os signos. Pisco os olhos pra umedecer minhas lentes. Hoje, o bicho Minstro e a Mocinha do Mato são meus amigos, não são mais aqueles mamaéns terríveis. Guardo uma lágrima, meus olhos bóiam. Olha como a menstruação é bonita, que vermelha! Meu sorriso é morada de minha alma, todos os dias. Cabelo repartido no meio, cheio de saudades. Lembro da saudade que se sente ali do lado do objeto da saudade. A lente quando está seca é ruim pra qualquer literatura. Às vezes me gosto por insistência. Às vezes eu me amo sem me dar conta disso. Às vezes eu confundo o que é sentimento com o que é reação emocional. Minha adolescência copiosa. Ontem, hoje, amanhã, manhã, tarde, noite, madrugada, cedo, meio, tarde, passado, presente, futuro, antes, agora, depois, o que foi, o que é, o que será, antigo, novo, inexistente ainda. Lembra de quando éramos pequenos e contávamos maveriques virados para o vidro de trás da veraneio? Tudo indispensável. Até os deslizes. O quadro só estaria completo com todos os detalhes. Ele é um todo no qual os percalços, aquelas coisas que fogem da simetria desejável das coisas, do espelhamento da coisa idealizada, são tão exatos quanto o gozo. Há música bastante em palavras que são docemente caladas, não ditas. E se foram sonhadas, se ficaram no mundo quimérico, a harmonia de nunca terem sido ditas é a soberana complacência da verdade. Disse a ela que ia fazer uma mentalização e dormi. A memória acerca do que não aconteceu pode tingir de intenso a palavra não pronunciada. Olhar cheio de palavra. Eu gosto tanto de você, besourinho, me perco nessas suas lindas pintas, filho. Cuidado com os meus gerânios! Meus pés gostam de dormir pra fora do cobertor. Não adianta colocar o dedo na cara dela e esbravejar quando ela apronta alguma coisa indesejada, errada, não adianta. Ela precisa de uma mão que a segure, de uma voz que a acalme, de um amigo que a ajude a pensar. Minha criança triste. Sou eu a minha criança triste. Hoje eu fui à lua pela janela da cozinha.
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Letargia Minusciosa


Estou com alguma culpa totalmente interna, antiga. 
{É mais fácil escrever sobre sentimentos do que alguma estória aceitável; sobre sentimentos indecifráveis, porque não precisam ser explicados. Assim, pode-se tentar explicá-los com palavras igualmente indecifráveis. Daí, o mais fácil é que se não precisa entendê-los porque são misteriosos e, sua verdade, seu entendimento, é justamente esse - não há lógica de lógica comum, é lógica de cada um. E então entende-se tudo deles, simplesmente: o entendimento é assim, dado, pronto, instantâneo (?), está aí, absorva e sinta o que já é de seus sentidos. O que se escreve ou se fala sobre sentimentos confusos, se lê na própria alma, qualquer um que o leia}. 
Estou com alguma culpa totalmente indecifrável, interna, antiga. Indecifrável porque estou com preguiça de ser profunda. Sim. Sonolenta, a fim de me jogar na cama, me enrolar no cobertor e deitar a cabeça em trinta travesseiros. Talvez sonhar com coisas fáceis.
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Trip Hop 


É. Essa música. O fluxo dos líquidos do corpo. Bailam. Sobem, descem, vão por entremeios, seguem as curvas dos vasos sangüíneos, das cavidades todas dos tecidos por dentro. O coração bombeia dando ritmo à dança, o contratempo pelos pulmõessinssspira.................... expiiiira....................................... Dorme...... acorda........ E a voz dos sentimentos. Ou os rios, linfa, e os mares, suores, e a convulsão da terra e suas lavas, seu sangue, e os ventos, seu inspirar........... e expirar....................ah..... sem cessar......noite....... dia........... e a voz de todas as coisas. MicromacroGaia.
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O vento sobressaltou a porta e bateu meu coração.
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La Estrada 


Uma estrada sem ninguém. Quem está olhando. Quem imaginou uma pessoa caminhando. Quem seria. Porque não pensou em alguém que vinha? Viu alguém que ia e se afastava do início da estrada. Talvez essa estrada terminasse mesmo no horizonte. Mas quem não pensaria isto. Esta estrada vai a algum lugar. Que lugar é este? O mundo. Não interessa que lugar específico porque, adiante e para trás, sempre estará lá a estrada. Primeiro vem um lugar, depois outro, depois outro... Mas quem imaginou que talvez parasse no primeiro lugar que chegasse e viveria ali durante toda a vida, feliz, e olhando a estrada, de vez em quando, e um horizonte diferente de um lado e do outro. Se vivesse num mesmo lugar a vida toda, no primeiro lugar que chegasse, quem poderia ser feliz. Mas, quem sabe, viajaria sem fim ao longo dessa estrada. Se quem parasse no primeiro ou no segundo lugar e assim por diante, ficaria imaginando a que outro lugar a estrada o levaria. Quem se perde no pensamento enquanto vê o horizonte e alguém a caminhar pela estrada. Alguém que ia. Porque não alguém que vinha? Se pegasse o caminho de volta entraria dentro de si mesmo. E a estrada continuaria de lugar em lugar. Quem não imaginou alguém que vinha porque não tinha reparado que a estrada não tem começo nem fim; que assim como não termina no horizonte também não começa onde ele vê. É que ele está de frente para este lado da estrada. Mas pode se virar pra qualquer lado. Quem percebe que ele e o mundo estão em qualquer direção, dentro e fora. Quem gosta do lugar onde está, mas sabe que seguindo a estrada vem outro (e outro, e outro, e outro, e outro...), que pode ser desconhecido ou familiar. Não é definitivo, mesmo que se permaneça nele para sempre. Sempre verá a estrada, e caminhar por ela não é necessariamente com os pés, pode ser também com o pensamento. Quem poderia imaginar.
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Quanta 


Ela foi embora. Foi pra outras pessoas. Sua vida, alheia à minha. Tão linda. E deixou canções pra eu ouvir e me lembrar dela. Ela foi embora e estão todos à sua espera. As outras duas minhas, lindas, ele, lindo, papai, a Silvia, e também o namorado, Tiago, dela, dela que foi embora e fez carinhas lindas na despedida como quem diz: está tudo bem, eu te amo, em breve estaremos juntas, na praia - e eu também, a mesma coisa. Ela foi embora e tem amigos que a querem por perto, talvez tanto quanto eu quero. Mas é que ela não é mais aqui, ela é lá. E eu ouço as canções que ela deixou pra mim e o cheiro do meu perfume me faz lembrar dela porque ela adora o cheiro do meu perfume, e ele é agora ainda mais perfumado porque tem o perfume da lembrança dela em movimento - meu perfume agora tem olhinhos dela, tem sorriso dela. Boa viagem, meu molhinho de salada pra passar no pão integral com ervas e azeite e pimenta do reino e alho e vinagre. Olhe a estrada e seja bela. Amo-te em todo lugar e a qualquer instante. Guarde o sol no céu pra eu tomar um banho de mar. Beijos e risadas boboalegreanas.
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Letal dia, 
Letargia. 
Ê, tardinha lerda. 


Divagar quase pairando...
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Eu cansei de tentar (me) entender (.) as mulheres.
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O silêncio daquele lugar eu nunca mais tive aquele silêncio daquele lugar eu nunca mais tive aquele silêncio. O meu silêncio de aldeã. Silêncio de dentro, de fora. E no espaço sem limite, ir pra todo lugar sem sair do lugar. Noite imensa. Verdadeiramente noite. Eu não me lembro de ter conhecido a noite antes. Silêncio não definido, contemplativo, silêncio que conheci de existir no mundo de repente feito um sopro, só emoçãopensamento, pensamento só. Profundeza. Aquele silêncio daquele lugar eu nunca mais tive.
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Olho para o quarto, os objetos, o quadro na parede, livros, caixas, papéis, roupas, cortinas, o pandeiro, a pasta vermelha - tudo tão imóvel que parece que o tempo está parado. Mas ontem as cortinas do meu quarto pareciam as velas de um barco estufadas pelo vento. O friozinho fazia-me sentir ao ar livre. O barulho das folhagens das árvores roçando-se me levaram ao longe. Onde, não sei. Mas aquele longe delicioso de estar, como se longe chegasse mais perto de mim. Esse quarto tem humores... 


Tudo aqui dentro está estático - há de movimento apenas o soar dos carros que passam de quando em vez lá fora. Até minha luz de cabeceira é estacionária e uniforme, não oscila um momento sequer. Está tudo à velocidade da luz, estático aos meus sentidos. Só eu me mexo. Com tudo estático à volta, vejo e sinto o movimento da minha respiração, o seu som, até posso ouvi-lo se procurar por isso. Volta e meia pisco os olhos. Escrevo. Este é o movimento. E sei que sangue corre em minhas veias e que meu coração o bombeia e que neste instante se dão várias sinapses em meu cérebro. O movimento interno, quase metafísico à minha impressão. O mundo de dentro, totalmente espontâneo. Aqui fora nem se move o ar, a não ser o que sorvo e expiro. 


Essa imobilidade das coisas me permite diversos sentimentos. A solidão me tem sido boa quando é real. Estou só com os meus pensamentos. Queria ouvir um barulho de vento a assobiar em janelas e paredes de vidro num prédio que dá para a beira do mar. Então fecharia os olhos um momento e sorriria. Talvez chorasse e soluçasse um pouco. E depois sentiria frio. Buscaria um cobertor e me sentaria numa cadeira com as pernas encolhidas para contemplar o mar noturno, daí, sentiria o oposto do que meu quarto me mostra hoje. Perceberia que tudo tem movimento e, assim, com esse movimento - ondas, vento, palhas de coqueiro sacudindo-se, uma solitária alma a passar de bicicleta lá embaixo - eu me sentiria estática feito a luz de minha lâmpada fria. 


Essa era a casa de minha avó, onde o vento uivava e onde eu me sentia anoitecida quando vinha a noite e as pessoas se iam. Ficava olhando através dos vidros das janelas daquele quinto andar o mar a balançar-se e, de vez em quando, a água enluarada. Agora percebo que vejo tudo isso daqui onde o tempo parou. E a estátua do meu quarto pode ter barulho das ondas e cheiro de maresia. Movimento, paralisia, pausa, som, melancolia. 


(Mais um requentado. Não queria colocar algo tão melancólico, mas lembrar do espaço que era o de minha avó, belamente e agradavelmente significado por ela, é sempre tão bom e é feliz. Dona Maiza, bela. A saudade é um tipo de contentamento...)
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Tenho a impressão de estar esquecendo alguma coisa. 
Quando eu sinto isso, olho minha bolsa, meu casaco, meus brincos grandes de sempre. 
Estão todos comigo. 
Mas a sensação de que alguma coisa ficou pra trás continua. 
Você sabe o que é sentir isso? 
Sabe quando está tudo certo e você sente que está faltando alguma coisa? 
Quando alguma coisa que não se sabe o que é está fazendo falta? 
Quando o ser e o estar, de alguma forma, parecem insuficientes? 
Vasculho a minha lembrança e o meu esquecimento. 
E eu com esse gosto doce na boca. E, no corpo, certo entorpecimento de ter te tocado a pele a noite inteira, ao mesmo tempo sinto essa tristeza da despedida. 
Tenho a impressão de ter esquecido meu coração na sua cama.
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Quando me desfolho, enlevada, me despindo ao seu olhar, 
O que procuro é o que vejo, fundo, que não sei que parte é de você. 
Fundo, nos teus olhos, mais fundo que a retina, mais fundo que o nervo ótico, 
Há algo que se move e que me chama. 
Um homem que é a coisa mais linda, uma presença imaterial, 
Mas muito viva, como outro você dentro de você, 
Mais meu, embora oculto. 


No fundo desses dois lagos profundos, 
Grandes lagos negros, parados, 
Lá no fundo há algo de indagação. 
Tem uma coisa que se anima, que é inquieta, 
E que objetivamente não pode sair deles, mas que salta, 
E de alguma forma me envolve completamente. 


Quero uma foto sua, sério, 
Com esses lagos parados, calmos só na superfície, 
Pra eu fazer da fotografia algo com minha imaginação. 
Que eu possa recortar somente os olhos, 
No silêncio da imagem, a face não. 
Interpretar, fazê-los um pouco o que vejo, fazê-los os meus olhos, como se com eles eu pudesse ver. 


E depois experimentar, na imagem, o silêncio dos olhos - 
Somente a face, e na sombra silenciá-los de luz 
Para imaginar o que há no que já não vejo. 
Eles continuarão ali, memorizados, devaneando-me. 
Esse enlevo que já antecipei, 
No que ao fazer o que digo me tomará, 
Me parece estranhamente e docemente eterno.
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Porque a chuva chove meu pensamento e meu pensamento chove no molhado. Minha Brasília, minha cidade úmida de novembro a março. Minha cidade com cheiro de terra molhada. Chove em Brasília e todos parecem chover também. 


É mais a chuva que causa a sensação de continuidade, de momento inacabado, perfeito, do que o corpo propriamente. O corpo, finito, definitivo. As próteses são pensamentos, desejos, fantasias, mentiras, crenças - talvez até mais importantes que essa definição que é a carne, essa exatidão, essa positividade do que pode se tocado e evidenciado. 


A partir do corpo se imagina um mundo inteiro e a chuva é o mundo inteiro, já, indefinida, infinda. Deixando cair suas premissas nas curvas estiradas dos meses, esquinas, becos, todos os lugares, e com que independência! Frases completas, sem arestas, imensidão de amor que se experimenta, mas não tem medida e se apresenta em múltiplas possibilidades. 


A água plástica moldando-se sem fim ao que quer que seja e os espíritos aquáticos e seus sentimentos - água, água, água, chovendo!
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Despertar 


(Divagar quase pairando) 


Hoje amanheceu segunda-feira, 
E as pessoas amanheceram neste lado do mundo. 
Não havia música para alguns, 
Para outros estava tudo repleto de canção. 
No amanhecer da segunda-feira fria de aqui não houve canção, 
Mas agora há um som a se espalhar pela manhã 
Deste dia que só não é qualquer porque é o dia em que todos vivem. 
O meu sabiá canta lá fora neste instante. 
Este instante é o presente, 
O instante único em que se vive. 
Como é estranho pensar sobre o presente. 
No instante em que penso ele já passou, 
E o futuro, que nunca há, já veio e transformou-se em momento, 
E transformou-se em acontecido. 
Já não existe mais. 
O presente, esse átimo, o futuro, só idéia, o passado, lembrança pura. 
O que é que existe? 
E existir, o que é, então? 
Parece que tudo quanto existe são as mentes a pensar e elaborar coisas o tempo todo. 
Segunda-feira. 
Um nome para agora e estas horas que virão até a noite. 
O tempo do qual cuidamos, um esquizofrênico. 
Criamo-lo assim cheio de nomes e características. 
E assinalamos o que se fazer dele a cada nome que passa. 
E nos enchemos de circunstâncias e afetividade e pensamentos 
Ou de tédio ou de alegria ou de confusão ou de paz ou de normalidade. 
Só podemos sabê-lo por suas marcas, 
Seus vincos deixados no irmão siamês, 
Palpável. 
Espaço, esse "tempo materializado". 
Tempo, esse espaço diluído. 
E a vida, 
Que não se pode dizer exatamente em que consiste, 
A segunda-feira amanhecida assiste.
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Olhando as pessoas pelos lugares, tenho a impressão de que já existem no mundo todos os rostos possíveis. Mas sempre nasce mais uma pessoa cujo rosto ainda não havia. Deve ser isso o infinito. 


Todas as possibilidades já existem, mas ao mesmo tempo não. E me espanto sempre com mais uma cara que vejo! Essa também - olha só! Essa eu ainda não tinha visto!

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

A Barata Gigante – continho onírico

Ela estava na parada de ônibus, mais duas pessoas havia. Sua mãe e uma desconhecida. Esperavam o circular no meio da áspera manhã, quentíssima e preguiçosa. Avistaram tentando subir na parede uma barata muito preta e cascuda, feito um besouro mais desajeitado. Caía virada, a espernear, a barata. Uma, a desconhecida, disse: que barata grande. Outra, a mãe, comentou: é mesmo. A outra outra, que era ela, emendou espantalhada: ela é do tamanho de um cachorro! E era. Sabe-se lá por que as umas assim não viam.
A barata era do tamanho de um cachorro. Não lhe puseram coleira, continuaram a esperar. O inseto levantou voo hábil, melhor do que sabia andar com aquelas cascas e embaralhapernas. Avermelhou-se quando voando se tornou translúcida, na reduzida densidade do voo. Ameaçadora, demonstrando toda a sua ruivez, era voadora, do tamanho de um urubu.
As duas umas nem davam por isso. Para elas mesmas era somente uma barata grande sem nenhuma especialidade. Para a mais outra, ela – com os braços se protegia.
Será que o medonho medo transmitia tanto poder à barata que só para ela o inseto crescia monstro? Era isso mesmo. Sim. Foi um sonho professor de desfazer autofeitiço.
Ela pegou na bolsa uma lente que levava para minúsculas leituras e olhou através, no diminuto, no revés, a baratona – que caiu redemoinhada, embaralhadinha e pequena. Agarrou o inseto com uma pinça e o guardou sem esperneio numa caixa de fósforos.
*inspirada num sonho dormido, numa preta velha, em Jorge, em Tuca, em Mai, em mãe, em Rosa, em Mia.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Conheci uns olhos hoje
(eram um par)
com mania de me causar encantos.
Foi um caso.
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Setembro chegou,
tão esperado,
e foi incêndio no cerrado.
Não foi agosto...
Mês desalmado!
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Eu tenho um amigo.
E digo: é olhar pro meu umbigo
(pra ver se me enxergo!).

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

     
         Céu cinza (c[éu]inza). Ar abafado (a[r]bafado) e as mãos do calor pegando em toda a parte (ser tão). Meio (ambiente) opressivo. Um pouco opressor, mas às vezes. Só às vezes, pra mim. Eu também gosto dessa seca, até enquanto não gosto. Flores intensas (falou minha irmã, ontem, quando íamos no carro: "essa seca terrível e o pessoal aí mandando ver." Isso ela disse das flores que passavam de várias cores, lindas, muitas. Nós passávamos. E era alegremente). É assim que as coisas são. Apesar, admiravelmente apesar, tem tanta coisa considerável no mundo.